Emiliano Jamba Antônio João
Quando o assunto é sobre Natal, sempre me vem a mente um versículo – talvez não o mais usado, mas, o que melhor simboliza o real significado do Natal na perspectiva africana e sua recepção para nós, cristãos africanos: a declaração do apóstolo João 1:14 de que “o Verbo pelo qual tudo foi feito, se fez carne e habitou entre nós”. Natal, é, portanto, uma celebração cristã no qual trazemos a memória o processo que o Invisível (Deus) se tornou visível, quando fez desse mundo sua habitação.
Isto por si só, já diria muita coisa sobre a postura que Deus quer de nós cristãos em relação ao mundo; no entanto, o autor não para por aí, já que continua dizendo que este Jesus – o verbo que irrompe o invisível para se fazer visível e presente (Jo. 1:51) – não surge entre nós como um acaso, já que é parte de uma linhagem anunciada pelos profetas (Jo 1: 23,30, 45). Uma profecia que se resume na expressão dita pelo próprio Jesus no evangelho de João 10.10: “Eu vim para que tenhais vida e vida plena”.
O NATAL NA PERSPECTIVA AFRICANA: VIVER E CELEBRAR A VIDA COMUNITÁRIA.
Se o Natal diz respeito a celebração da vida, qual seria seu impacto em um contexto moldado por um sistema necropolítico, por políticas da inimizade e de brutalidades infindáveis[1], do qual a morte não se configura numa exceção à regra, mas a própria lógica de viver e estar no mundo? Que relevância teria a palavra de que o verbo pelo qual tudo foi feito, decidiu em sua autonomia, habitar entre nós? E para quê? Qual relação há entre o nascimento deste Jesus e o continente africano? Estes e outros são alguns questionamentos que poderíamos nos fazer ao pensarmos o Natal na perspectiva africana.
Em Mateus 2.13-18, encontramos um relato que pode nos ajudar a responder estes questionamentos. O texto diz que quando Jesus nasce, sua vida é colocada sobre ameaça da política de morte de Herodes; e diante desta situação, Jesus juntamente com seus pais, tiveram de fugir para o Egito, permitindo-nos assim pensar o Egito enquanto este lugar de cuidado e da proteção da vida, e, a África de forma geral, enquanto este lugar em que a vida é abraçada.
Seria correto pensarmos o Natal enquanto afronta as políticas de morte, e a africanidade enquanto uma via de cuidado e de proteção da vida?
Bem, ao lermos os textos acima citados, vemos que o verbo se tornou carne para contrapor à lógica da morte, de um mundo imerso na maldade, composto por aproveitadores, enganadores, gananciosos, e ladrões de todo tipo (de sonhos, de esperança, de amanhãs etc.,), que segundo o apostolo João, não apenas roubam como também, matam, e destroem tudo a sua volta. O Natal se torna assim, não somente apreciável, louvável, como também libertador.
É isto que para nós significa o Natal na perspectiva africana, uma data em que celebramos a vitória da cultura da vida em relação à cultura da morte. Talvez seja por este mesmo motivo que, quanto ao nascimento de Cristo, os evangelistas, recorrendo ao profeta Isaias, irão dizer que “o povo que andava em trevas, viu uma grande luz, e sobre os que habitavam na região da sombra da morte resplandeceu a luz” (Isaias 9:2)[2].
A união do mundo visível e invisível em Jesus
O Natal é muito mais do que os pontos apresentados anteriormente. Como africanos, acreditamos em uma união perfeita entre o mundo visível e o invisível, portanto, não devemos nos limitar a uma visão sociopolítica, mas também considerar sua importância cultural. Ao analisarmos o que é dito por João, encontramos uma premissa bem conhecida por nós africanos: a ideia de que nada neste mundo acontece por acaso. Sobre esse aspecto, Raul Altuna (2014) diz que, para os Bantu, por exemplo, “a realidade completa é o resultado da comunhão perfeita, ainda que em mutação, do visível e invisível” (p.68), e segundo este mesmo autor, conheceremos a existência da natureza íntima do ser invisível (Deus) através de sua aparência concreta que é seu Ser concreto.
Entendemos melhor esta linguagem filosófica quando Jesus, no evangelho do Apóstolo João, diz aos seus discípulos que se realmente o conhecessem, conheceriam também o Pai. Já que quem vê Jesus, vê igualmente o Pai[5]. Nesta perspectiva, o Natal na perspectiva africana se torna, um convite íntimo e relacional ao conhecimento do invisível que se torna visível.
Ao longo do capítulo 14 do evangelho, o autor busca destacar que o nascimento de Jesus marca o início de uma nova era em que não há mais uma separação entre o mundo visível e o invisível, mas sim uma interação entre ambos, constituindo uma única realidade. Em outras palavras, o autor está mostrando que com o nascimento de Jesus, é inaugurado um tempo em que a dicotomia entre o mundo visível e invisível é superada dando lugar a uma nova forma de interação entre eles. Isto significa dizer que o nascimento de Jesus dissipa o dualismo, que durante muito tempo reinou e ainda reina no imaginário de muitos crentes.
Esta afirmação – decorrente da simbologia do Natal – da encarnação divina no aqui e agora, entrou em nosso imaginário africano quase que de forma espontânea, como diz Altuna (2014) “longe de manifestar qualquer sentimento de mal-estar, ante o invisível, o africano encontra-se adaptado”, o que significa dizer que para o africano “o elemento exterior e interior, misteriosamente unidos, integram a realidade de tudo que existe” (68). E será com base nesta premissa que ao lermos as escrituras, entendemos o Natal, sobretudo partindo da passagem de João 1:14.
Uma passagem que para nós, expressa o princípio de que, Aquele que segundo a tradição cristã é eterno foi conformado ao tempo. Aquele que jamais foi criado deliberadamente assumiu a forma humana; o infinito tornou-se finito, trouxe os mistérios do mundo invisível ao mundo visível, interligando ambos mundos. E por mais que nossa mente não consiga explorar plenamente a profundidade disso, a verdade é que Deus foi visto em carne e osso habitando entre a humanidade.
A RESPOSTA DEVIDA AO CONVITE DO NATAL
Diante desta união e desta revelação, qual resposta Deus espera de nós enquanto cristãos? A desprender do Cap. 14 versículo 19, do evangelho de João, vemos existir ali uma extensão do mundo invisível e de seus princípios no aqui e agora, através de nós. Os princípios fundamentais que guiam essa visão estão geralmente relacionados à promoção da vida e se expressam através de valores como o amor-poder e o amor-justiça[7]..
Mais do que apenas um conceito abstrato propagado durante a época natalina, o amor é entendido aqui como uma tríade composta por amor, poder e justiça. Essa visão busca promover a união entre todos os seres, tanto vertical quanto horizontalmente. Acreditamos que o amor é o único caminho para reunir o que está separado, seja em relação à natureza, à cultura ou às fontes divinas. Essa postura se justifica pelo fato de que, em todas as suas formas, o amor é capaz de promover a união e a conexão entre todos os elementos da vida.
O amor nestes moldes, entendido, não se restringe apenas no polo individual, mas também reverbera na comunidade dos grupos sociais, familiares e grupos nacionais. Quando nos relacionamos de forma deficitária, o desejo de participar desse amor é direcionado para o poder que está presente no grupo. Esse amor nos incentiva a buscar nossas origens culturais e divinas, nos guiando em direção a uma conexão mais profunda com nossa essência. É por meio desse amor que compreendemos o verdadeiro significado do espírito natalino, que não se trata apenas de uma celebração passageira, mas sim de um amor que resgata a vida e se opõe à cultura da morte. Esse amor deve ser cultivado e celebrado diariamente, até que o Verbo volte novamente.
CONCLUSÃO
Em suma, o que estamos afirmando nesta nossa pequena reflexão sobre o Natal na perspectiva africana é que, como africanos, somos defensores da vida como um dom do ser supremo (Deus) e não podemos pensar no Natal para além deste mistério. Esse mistério transcende o dualismo entre vida e morte e se insere em uma celebração contínua da vida em comunidade. Como Altuna nos diz: “O bantu nada deseja mais ardentemente do que viver sem fim” (p.71). No entanto, essa experiência só é plena quando vivida em solidariedade comunitária.
Mizeka[10], seguindo os passos de Altuna, nos faz pensar o Natal na perspectiva africana, dizendo que os africanos desejam a vida mais do que tudo, e desejam-na em abundância, conforme nos é prometido em João 10:10, “mas ele quer vivê-la com exaltação, no âmbito em que ela se torna sublime, já neste mundo, é a este nível que o homem alcança Deus da maneira mais inspiradora”[11]. Estaria ali a razão do Messias ter escolhido a África, berço da humanidade, como este lugar de acolhimento, hospitalidade e de Boas-vindas do Messias à terra? Esta é uma pergunta que não quer calar, mas também não é nossa pretensão respondê-la, mas deixá-la apenas para a reflexão. Contudo, não é também nossa pretensão imergimos numa narrativa de uma África essencializada, mas apenas recolocá-la nos acontecimentos da narrativa bíblica.
De qualquer modo, é importante destacar a premissa do africano como um ser que valoriza a vida acima de tudo. Isso é particularmente relevante para a nossa conclusão, pois, como mencionado anteriormente, a vida tem sido banalizada nesta nova África, que ainda lida com o trauma da colonização e com as consequências de uma saída mal sucedida da opressão. Essa banalização ocorre devido a uma concepção distorcida de poder.
Diante disto, como pensar estes desígnios africano? A impossibilidade é a resposta que surge de imediato; entretanto, Lucas nos diz: E o anjo lhes disse: Não tenham medo! Estou aqui a fim de trazer uma boa notícia para vocês, e ela será motivo de grande alegria também para todo o povo! (Lucas 2:10), é por esta razão que o nascimento de Jesus é motivo de alegria também para nós africanos, pois o verbo se tornou carne e habitou entre nós, e nos convida a sentarmos à mesa, a partilharmos o pão, e a termos uma vida transformada e permeada pelo princípio do amor.
Portanto, é importante estudar a fundo os lugares onde a vida é valorizada e onde a justiça é imperativa, especialmente em um contexto africano. Para uma teologia adequada a esse contexto, deve-se basear em uma teologia que transcenda o amor e o poder e promova a valorização integral do Ser por meio da Justiça. Para nós, celebrar o Natal na perspectiva africana significa anunciar com palavras e ações a valorização integral do ser, por meio do sopro comunitário do espírito. Essa celebração ultrapassa o individualismo e abraça a comunidade, reunindo as mais diversas famílias.
[1] MBEMBE, Achille. Necropolitica. São Paulo: N-1 edições, 2018.
_______. Políticas da inimizade. São Paulo: N-1 edições, 2021
_______. Brutalismo. São Paulo: N-1 edições, 2021
[2] Ver também. Mt.4:16; Lc 4:18-19
[3] Ver. ALTUNA, Raul Ruiz de Asúa. Cultura tradicional Bantu. Angola: Paulinas, 2014
[4] ALTUNA, Raul Ruiz de Asúa. Cultura tradicional Bantu. Angola: Paulinas, 2014, p.68
[5] João 14:7-31
[6] Raciocínio este construído sobretudo, durante a época dos movimentos Evangelicais do sec. XIX que quando penetrado em nossa espiritualidade cria uma espiritualidade dúbia, como se diz na linguagem popular com o corpo na terra e a cabeça no céu.
[7] Tillich Este tipo de amor é um amor que perpassa as meras falácias (do apenas dizer eu “te amo”), as meras tentativas de generosidade e cumprimentos de formalidades para dar lugar a um amor eficaz, eficiente, sincero e prático na qual coloca o Outro em detrimento do Eu. O Apostolo Paulo dando um recital sobre o amor em sua carta aos Coríntios explica este fenômeno da seguinte forma: O amor é ouvinte, é doador e perdoador buscando sempre transcender o Eu (1 coríntios 13:1,4-7). TILLICH, Paul Johannes., Amor, Poder e Justiça. São Paulo: Fonte Editorial, 2004.
[8] As pesquisas africanas captaram muito bem esta relação através do estudo do neologismo muntuísmo e Ubuntu, se o segundo significa que a existência do Eu se dá pelo reconhecimento da existência do Tu, o primeiro significa que a existência do Eu se encontra no relacionamento vertical e horizontal dos seres: “eu sou porque eu creio num Ser, e se eu creio, eu amo” Ver. BONO, Ezio Lorenzo. Muntuísmo: a ideia de pessoa na filosofia africana contemporânea. Maputo, Educar, 2014.
[9] Ver. BUJO; MUYA 2012; TILLICH 2004.
[10] Apud MUYA, 2012, p.51
[11] MIZEKA, apud BUJO, Bénézet; MUYA, Juvénal Ilunga., Teologia Africana no século XXI: algumas figuras. v.1, v.2, Angola: Paulinas, 2012, p.51.